Sei lá, acho melhor alertar
de cara que o título aí acima é irônico. Hoje em dia, nunca se sabe. Há tanta,
mas tanta, mas tanta coisa a ler na rede, que você, pobre leitor e você, meiga
leitora, talvez já estejam anestesiados contra sutilezas como figuras de
linguagem.
Pois é, a ironia também é
uma delas. Às vezes até eu mesmo me esqueço. E, você certamente sabe, é uma das
mais fáceis. Senão a mais. Exatamente por isso, talvez a menos perceptível.
Não vá pensando que vai
aqui embutida uma outra ironia, esta não tão visível, quanto à sua capacidade
de fisgar sentidos por ventura ocultos no meu texto.
Nada disso. (E, en passant, veja que hoje não
estou tão averso a parágrafos. No mais das vezes morro de preguiça de abri-los.
Sei lá de novo. Tenho essa ojeriza ao supérfluo.)
Lhe asseguro — nada há
escondido debaixo deste meu singelo texto. Neste meu blog, que criei
especificamente para ajudar os brasileiros honestos a combater o assoberbante
tsunami de infâmias que o partido ora no poder vem perpetrando há quase onze
anos, procuro evitar fazer literatura. Para isso tenho outro (blog). Lá, deito
e rolo. Deito, rolo e outras safadezas mais. Aqui tento ser sério. Você já
percebeu que nem sempre logro o ser, obviamente. Mas, aqui no Delenda PT!,
procuro manter distância de rapapés literários. Entre eles, as figuras de
linguagem. Entre elas, a ironia.
Agora, ao porquê do título.
Enfim.
Já há algum tempo venho
ciscando com a vontade de escrever algo sobre o sr. Nelson Motta. Mais
precisamente, desde o dia 26 de outubro do corrente, quando entrei no portal do
Estadão e cliquei, como sempre faço (ou melhor, fazia) no link que levava à
página dele.
E topei cum texto
intitulado assim: Dois pesos e
três medidas. (Graças ao bom Deus, apenas com a primeira letra em
maiúscula. Parte da imprensa ainda resiste bravamente aos modismos que
tradutores semiletrados vêm introduzindo no vernáculo, um dos mais deletérios
sendo os abomináveis title
cases, ou seja, a mania de colocar em maiúsculas cada letra inicial de cada
palavra dum título.)
E o referido texto começava
assim: "Ninguém aguenta
mais falar do mensalão."
O período, a frase, o parágrafo de abertura de todo texto é fundamental para o leitor exigente, como é meu caso, decidir se vai encarar os restantes parágrafos, frases e períodos. Ou não. Naturalmente, me refiro, outra vez, a peças de natureza e fim literários. Listas de melhores aberturas de romances já viraram clichê. O Google é testemunha. Os entendidos costumam perorar que “Todas as famílias felizes se parecem; mas cada família infeliz é infeliz a seu modo” é a abertura clássica dum clássico. Infelizmente, a esta altura, igualmente lugar-comum. O Estadão ainda exibe uma página em que Daniel Piza, não sei se tão saudoso quanto se espera se tornem os mortos, não perdeu a chance de também fazer sua lista. Pois é.
O porquê do título. De
novo.
Você, pobre leitora ou
você, meigo leitor, por acaso tem em algum cantinho obscuro de sua cabeça umas
cismas que, cismas que são, nunca se deixam resgatar da escuridade para que
você as possa elucidar, isto é, trazê-las à luz? Não vai negar, vai? Tenho
quase certeza de que elas estão lá, sim — ora perdidas no limbo entulhado de
cacarecos metafísicos que você guarda n'alma, ora eclodindo repentinamente em
florescentes, estrepitosos rojões mnemônicos, nas horas mais impróprias, como a
anunciar que você pode ter se esquecido delas mas elas não se esqueceram de
você. Essas coisinhas são tão chatinhas... e tão humanas, não é mesmo?
Pois é aqui, na brumosa
seara das nossas cismas mais ambíguas, e vagas, que finalmente vamos nos
confrontar com o título deste renitente textículo.
A bem da verdade, nunca fui
lá muito com a cara do Nelson Motta. Ou "Nelsinho", como o chamavam
os que gostariam de mostrar a nós, eternos espectadores das celebridades, que
faziam parte do círculo íntimo dele. E havia ainda aqueles murmúrios nunca
explicitados de fato dando conta de que Nelsinho era um dos maiores comedores
da paróquia. Ou "pegadores", como querem hoje esses desocupados que
fazem "carreira" falando bem e mal dos famosos. Embora Nelsinho
parecesse verdadeiramente ser exímio no trato com as mulheres e eficiente
nos proveitos que viesse a tirar delas, sempre me incomodaram as evasivas com
que ele reagia quando lhe elogiavam sua fama de don juan (em minúsculas, please;
hífen facultativo). Sim, o Nelsinho Motta conquistador infalível só fazia
aumentar essa minha cisma. E a cisma crescia ante a relação dele com a música
brasileira, a bossa-nova, os bossa-noveiros, a tropicália, os tropicalistas...
e as gravadoras. Acho que nunca consegui dissociar numa boa o curioso musical
boa-praça e chegado do beau
monde musical e o
relações-públicas dissimulado a serviço dos produtores musicais. E então
Michael Jackson morreu e lá está o ubíquo Nelson Motta no Jornal Nacional,
encarregado pelo Jornalismo da Globo a tecer o panegírico daquele pobre-diabo
que se suicidou à base de anestésicos. Como não se poderia esperar outra coisa,
Motta elevou Jackson, em duas ou três frases, a gênio da música. Que é que
podia dizer, afinal? Motta não é bobo. O mundo estava em comoção. E totalmente
aberto para devorar com capa e tudo os discos de Jackson. Que no dia seguinte
galgavam ao top das paradas. Que é que podia fazer, afinal? Este é um
sistema capitalista e estamos nele para faturar, certo? Concordo. Pudera eu
também ser tão espertalhaço. A cisma? A cisma é que, poucos anos antes, quando
era correspondente, salvo engano, da Folha em New York City, Motta nunca perdia
a oportunidade de exaltar Madonna como a grande diva da música pop e esculachar
Jackson como um malandrinho aproveitador isento de qualquer resquício de
talento musical.
O título, porra!
Não sou colaborador regular
de nenhuma publicação (me perdoa, Camille Paglia, não passo dum mero
blogueiro), mas imagino a barra que esses coitados são obrigados a carregar no
lombo toda vez que precisam forjar um textículo que engambele seus leitores sem
dar muito na vista.
Você se lembra de quando
falei das figuras de linguagem? Pois é. No jornalismo, seja diário, digital ou
em papel, você não pode ir inventando, ou enchendo linguiça, só para ocupar
espaço e torcer para que seu leitor se faça de bobo e não acuse o engodo. É
aqui que o jornalismo se revela infinitamente mais difícil de fazer do que a
literatura. Isso também é muito fácil de comprovar. Exemplos não faltam.
Gilberto Dimenstein é o primeiro que me ocorre. Me parece ter sido escalado
pela direção da Folha para representar o articulista novo para o leitor novo. (Rings
a bell?) Não sei se me exaspero ou me entristeço ante a insistente manutenção
de Dimenstein como prócer desse "novo" jornalismo que a Folha há
décadas, desde a ascensão e queda de Matinas Suzuki como editor executivo do
jornal, vem tentando implantar, felizmente em vão. Na mesma FSP temos muitos
outros casos. Barbara Gancia, para ficarmos na banda dos criadores de caso
fúteis e irresponsáveis. E o inominável José Simão, orgulhoso portador da
bandeira do articulismo analfabético ao paroxismo da boçalidade
autossuficiente.
Nos últimos tempos vinha me
sentido razoavelmente confortável com as crônicas de Nelson Motta no Estadão.
Sim, é desse jeitinho fofo e íntimo que me sinto com relação a gente que leio
com certa regularidade. Os que escrevem passam a fazer parte do mundo de nós
que criamos o hábito de lê-los, não é verdade? Em meu caso particular, meu
mundinho psíquico é habitado por algumas dezenas de escritores, críticos e
articulistas da imprensa que aprendi a conhecer e a seguir mais ou menos
diuturnamente e de quem aprendi a gostar e, em alguns casos, sentir falta. É como
se esses sujeitos passassem a ser meus parentes e amigos.
É exatamente por isso que
muitas vezes esses escritores em que aprendemos a confiar nos deixam meio putos
quando nos decepcionam. Okay, admito, entramos numa questão altamente
complicada colocando que esperamos que um desconhecido sempre aja da mesma
maneira indefinidamente. Temos o direito de exigir fidelidade daqueles que lemos? (Por falar nisso,
outro dia Philip Roth anunciou a própria aposentadoria e me deixou entre
perplexo e aliviado. Mas vou tratar do assunto outra hora.)
No Estadão, Motta vinha
tratando do lullopetismo e a súcia que o compõe com argúcia, propriedade e
relativa precisão. A maioria dos seus textos me surpreendia pela coragem das
ideias e a belezura das construções sintáticas. Cheguei num ponto em que até me
dispus a inumar aquela detestável imagem que ainda guardava do Nelsinho.
Então outra surpresa, esta
nada alvissareira. "Ninguém aguenta mais falar do
mensalão." E parei aí.
E como aí parei, não faço
ideia do que Motta disse a seguir. Obviamente.
E então me lembrei pela
enésima vez de quantos textos parei de ler exatamente no primeiro ponto final.
E fico aqui conjeturando quantas vezes perdi a chance de ler um bom texto e/ou
conhecer um bom escritor.
Tenho cá para mim que um escritor
que assim se anuncia em entrevistas na tevê e noites de autógrafos não deveria
fazer de conta que não dá pelota ao assunto mais quente do país em décadas.
Será que o tema mensalão está esgotado e só eu não percebi? Dificilmente. Muito
pelo contrário. Até aqui, falamos indecentemente pouco desse assunto. Hoje,
aqui, agora, não há assunto, absolutamente, mais importante que o mensalão, não
há pauta jornalistica mais premente que o mensalão, não existe enredo cujo desfecho
seja mais aguardado do que o do mensalão. A menos que você esteja fazendo as
unhas ou removendo os cravos do rosto num salão de cabeleleira.
Um escritor não é escritor se não estiver antenado na crista da onda. Period. Paragraph.
Um escritor não é escritor se não estiver antenado na crista da onda. Period. Paragraph.
Me parece que Nelson Motta
escreveu dois livros ultimamente, salvo engano. É tanta gente escrevendo tanta
coisa de tantas formas em tantos lugares, não é mesmo?
Ao leitor e à leitora, peço
que sejam, acima de tudo, parcimoniosos em suas leituras. Sobretudo pela rede.
Precisamos desenvolver, cada vez mais, um mecanismo próprio de identificação do
que vale e do que não vale a pena ler. Salvante os grandes como Tolstói e sua
Anna Karênina em que todas as famílias felizes se parecem, um nome célebre no
título dum livro ou no alto duma página digital não garante grande coisa. Ler é
garimpar. Se, para você, ler é defacto uma paixão, como é meu caso.
Veja como é curiosa essa
questão. A palavra anda tão surrada e abusada, que um sujeito como Gabriel
Chalita já escreveu sei lá quantas dezenas de livros e, sendo ainda
relativamente jovem, é na certa o mais prolífico escritor brasileiro dos
últimos tempos. Quem o lê? Não imagino nem quero saber.
E, do outro lado da estante, parece
que Marcola, presidente do novo partido do PCC, alega ter lido três mil livros so far and counting. Well, dado
o infinito tempo livre de que esse sujeito dispõe no presídio, pode ter lido,
vá lá, uns cem desde que adentrou o recinto. São extremamente raros os
felizardos que têm ou tiveram a dádiva de ler mais de mil livros durante a
vida. (Quanto aos que jamais leram um que fosse, estamos sentindo na pele a tragédia que tamanha ignorância é capaz de provocar.)